27/05/12

Filipe Correia: 1 dia; 1 velocidade, Lisboa->Faro!

Um grande amigo, Filipe Correia, fez no dia de ontem cerca de 300kms, desde de Lisboa até Faro, utilizando uma bicicleta fixed-gear. Se fazer esta distância num dia é duro mas fazê-lo com apenas uma velocidade e carreto preso, é muito mais difícil. Simplesmente porque todos os kms são a pedalar, quer seja a subir, quer seja a descer.
Que este seja o primeiro de muitas viagens.
Aqui fica o relato escrito pelo próprio.

Estava marcado e hoje fui com o Pinela fazer o Troia - Sagres + Sagres - Faro (dois dias), ambos de fixed. Devo confessar que estava com uma ansiedade brutal que acordei às 2 da manhã e não consegui dormir mais.
Apanhamos o primeiro comboio para Setúbal. Fizemos um corta mato em direcção ao barco para Troia, que até serviu para descer uma escadaria de bicicleta.
Cerca das 8:20 estávamos a arrancar de Tróia, o objectivo era ir sem parar até São Torpes. Fomos a rolar a um ritmo tranquilo 25/30km. Fui reconhecendo o caminho do passeio que havíamos organizado aqui no fórum até São Torpes, um dos meus maiores medos era perder-me. A meio caminho o BB da bicicleta do Pinela começou a desapertar e a dar estalos. Após falar com o mecânico no carro de apoio, que estava estacionado em Savavém ficou visto que era melhor não arriscar. Assim sendo o Pinela fez-me só companhia até Sines onde apanhou o autocarro para Lisboa. Continuei para São Torpes e como já havíamos feito alguma curtas paragens decidi não parar e meti-me em direcção a Porto Covo, ai as minhas indicações não batiam certo com a estrada, comecei logo a stressar mas acabei por me concentrar no ponto a seguir e aparentemente estava no caminho certo. O facto de ir sozinho deu para ir a pensar na vida, e lembrei-me que em vez de ir para Sagres devia era metermos logo em direcção a Faro, porque esse era o meu destino final e Sagres não me dizia muito. Comecei a fazer contas e pareceu-me que conseguia chegar mesmo ao inicio da noite, como não tinha luzes era preocupante. Aumentei um pouco o ritmo e achei a segunda parte do percurso, entre São Torpes - Rogil, bastante mais fácil do que fazia crer a descrição que encontrei num site do Troia - Sagres. Na passagem por vila nova de mil fontes, enganei-me porque o roadbook não era muito bom e entrei na vila. Não há nada mais desmotivante do que ter que voltar para trás. Sem grande dificuldade coloquei-me no inicio do Algarve, com a subida de Odeceixe que para mim era o bicho papão. Acho que o meu trauma se devia às vezes que passei lá com a antiga carrinha do Sota, e o que via das auto caravanas. A subida é tranquilo. Penso que subir a Infante Santo e depois a outra rua que não sei o nome e que vai até campo de Ourique é pior ou semelhante. Apanhei a estrada para Lagos, EN120, e cheguei ao desvio onde é para ir para Vila do Bispo (e completar-se assim o Troia - Sagres) e decidi que ia mesmo para Faro. Não tinha noção de como era o caminho dai para Lagos e foi talvez a parte que me custou mais. Ainda parei uns 5 minutos sentado ao lado da estada, pois era desesperante não ter a noção da distancia e não se ver informação alguma. Muito sobe e desce, e quando via uma descida só pensava que a seguir tinha que voltar a subir aquele desnível. Dou por mim e chegou a uma rotunda que diz Lagos pela autoestrada... meti-me pelo caminho que era para outra povoação e passado alguns metros aparece-me a dizer que também era para Lagos pela nacional. (Senti que estava mesmo a enganar as pessoas, quem não conhece o sitio e vai de carro é "forçado" a ir pela autoestrada e a pagar). Lá consegui chegar a Lagos e como não tinha cadeado e estava sozinho pensei que a marina devia ter boas esplanadas e comidas modernas para pessoal vegan. Foi a única paragem de mais de 5 minutos e digna desse nome. Fiquei 45 minutos a almoçar às 5 da tarde. Estava tão cansado que não conseguia comer. Começou a levantar-se uma grande ventania e pensei que até podia ser uma coisa boa pois parecia-me que era de Oeste. Lá ganhei coragem, perguntei onde era a EN125 e arrastei-me ao lado da bicicleta. Paragens grande matam-me. Ao sair de Lagos devido ao traçado apanhei vento contra, e lateral mas quando apontei finalmente a Portimão o vento era maioritariamente de trás, dei por mim a rolar a 40Km/h durante largos períodos, o que foi bom para elevar o moral. Já fiz tantas vezes a EN125 de carro, mas não tinha a noção dos desníveis, e tal como eu suspeitava é um carrossel que vai moendo. Felizmente a estrada não está em tão mau estado como tinha na memória e as bermas são bastante largas em montes de sítios e optei por rolar ai pois os carros voam na estrada.
às 21:15 cheguei a Faro, cerca de 13 horas depois de ter começado.
No computador deu uma média de 26km/h
fiz cerca de 300km, dos quais 230 sozinho.
Quem está na duvida para fazer o Troia - Sagres recomendo vivamente. não é difícil de se fazer de fixed mas não é um passeio domingueiro. requer algum treino para se rodar a uma velocidade constante. eu fiz durante mês e meio dois treinos nocturnos por semana, e mais uma volta de 80km e uma de 150km sem parar. também não recomendo relação muito leve, é preciso conseguir rolar a pelo menos 30km/h no plano sem se ir numa cadencia desconfortável.


Pneus e relação.
Para uma viagem destas que não tem assim nenhuma subida de morte, embora nas descrições tenha sempre visto referencia a duas, o importante é rolar rápido. Pneus 23c antifuro e em bom estado, o meu pneu de trás está a ficar com a parede lateral rebentada e antes da viagem estava ok. O ideal é pneus relativamente novos. Câmaras de ar com liquido antifuro pode também ser uma mais valia. O esforço é muito mais mental do que físico e ter um furo dá cabo de qualquer um. Eu fui com uma pedaleira de 44 e um cog de 16, o que dá um ganho de 2.75, penso que o ideal será 2.8 mas é daquelas coisas que varia bastante de pessoa para pessoa. Relações de 2.5 e coisas parecidas que muita malta usa em Lisboa é para esquecer pois a rolar rapidamente vão esgotar a cadencia que aguentam. Normalmente ando com 44x17 mas no ultimo mês coloquei a relação da viagem para me ir habituando. É preciso rolar sem esforço a pelo menos 30 e conseguir fazer alguns bocados a 40. Eu fui com travão e nas descidas tinha que ir a travar que não tinha pernas para tanta velocidade que atingia, e era um desperdício estar a travar porque não conseguia aguentar o embalo.

Alimentação.
eu sou vegan e não tenho a minha duvida que isso ajudou pois o ideal é comer muitos vegetais, massas e cereais integrais, e evitar a carne. O que com uma dieta, dita normal, também se pode fazer com alguma disciplina. simplesmente tive o trabalho facilitado. se olharem para o pessoal que faz longas distancias fisicamente são bastante diferentes dos que fazem sprints.

Bicicleta.
Troquei o guiador e coloquei um bullhorn em vez do flat bar que tinha, o que me permite rolar mais rápido com menos esforço. Dá-me também pelo menos 3 posições diferentes para os braços o que me diminui a fadiga.
É importante verificar e voltar a verificar que está tudo OK pois há ferramentas que simplesmente não podemos levar numa viagem destas. Tudo bem apertado, nada de folgas. Por exemplo detectei que a minha corrente estava "esticada" e já não encaixava bem na pedaleira e troquei a mesma na semana antes da viagem.
Arranjei dois suportes para bidons, e um saco para o selim.
Parece-me que também é bastante importante um computador (vulgo conta km) pois é necessário saber gerir o esforço e manter um rolar constante.

Roupa
Comprei uns calções, de linha branca, mas com um almofadado de marca de gama alta. Os calções têm alças para facilitar ao máximo manterem-se no sitio.
Jersey com bolsos atrás.
Levei ainda umas mangas para me proteger do frio de manhã e do calor durante o dia. Só devo ter pedalado sem as mangas uns 50km.
Luvas com dedos
Capacete
Oculos de sol

Treino
15/20 km por dia por Lisboa
no ultimo mês e meio + duas noites por semana 30/40 Km
uma ida e volta a cascais sem nunca parar em ritmo forte, uns 80km.
uma ida e volta a santarem sem parar de 155km.
antes de começar as voltas de bicicleta à noite por norma corria 10km 3 vezes por semana.

Corpo
Usei um creme próprio para ciclismo para besuntar-me por baixo dos calções. Não usei roupa interior para evitar que se enrolasse e ficasse assado.
Protetor solar 50+ para crianças. E mesmo assim tenho marcas do sol, embora não esteja vermelho nota-se por exemplo a marca das meias nas pernas e as luvas nas mãos.

Cabeça
Acho que é a parte mais importante. Embora 300km sejam um teste bom à parte física, a velocidade é moderada (fiz média de 26km/h) e não é preciso grande força. É acima de tudo um esforço mental, em que é preciso estar concentrado durante muito tempo. Eu vou fazendo apostas comigo mesmo para me conseguir ir motivando. Por exemplo vou sempre a tentar pedalar a uma velocidade mais alta do que a média que estou a fazer para ir subindo a média. Nas subidas digo que não vou descer de uma determinada velocidade para ter aquele estimulo extra. Vou fazendo contas de quanto tempo levo para chegar até uma determinada povoação, contas sempre conservadores e quando consigo fazer a distancia em menos tempo sinto um aumento de motivação (basicamente vou-me enganando a mim mesmo).
Partir a viagem mentalmente em etapas também ajuda. 300km é muito mas 100km + 100km + 100km é menos. Por norma a solução para os problemas passa por os partir em bocados que consigamos resolver.
Li também o livro do Dean Karnazes http://www.ultramarathonman.com/web/books/ultra.shtml que me deu uma vontade brutal de ultrapassar os meus limites.

Mantimentos e ferramenta
na bolsa do selim levei o seguinte
calções de atletismo e tshirt de manga comprida pois a ideia inicial era dormir em Sagres
bomba
estojo de remendos
adaptador de válvula para poder encher os pneus nas bombas de gasolina
desmontadores
3 câmaras de ar
chave pedro's trixie (14, aperto do lock ring)
um saco com frutos secos
cubos de marmelada (nos supermercados há uns sacos com unidades individuais de cubos de marmelada que corto ao meio sem abrir a embalagem individual)
carregador do telemóvel porque ia ficar em sagres

nos bolsos do jersey
telemovel
carteira com dinheiro pois por incrível que pareça não é nada fácil encontrar multibancos mesmo nas estações de serviço das terrinhas.
chaves de casa
barras de cereais
mais cubos de marmelada
levei duas embalagens de gel, nunca tinha usado e não entendi se era bom ou não. sabiam mal isso é certo.
folha com o roadbook a dizer onde é que tinha que virar para o Troia - Sagres

levei ainda às costas um saco com alças em cordão (dos que costumam dar nas corridas de atletismo) em que ia uma garrafa de bebida isotonica congelada, e duas garrafas de água também congeladas. O peso não era muito e rapidamente fui passando o liquido para os bidons que iam na bicicleta e acabei por meter o saco num bolso do jersey mas também podia deitá-lo fora pois não tinha valor.

Penso que por aqui dá para ver que não sou grande maluco, foi uma coisa pensada e preparada, embora a distancia inicial fossem 200km e tenha acabado por fazer 300km. A primeira vez que corri também ia fazer 10km e a meio caminho mudei de opinião e fiz meia maratona. Talvez tenha o meu quê de maluco.

Se eu consegui fazer penso que outras pessoas que por aqui andam também o conseguem, para algumas talvez fazerem 100km será um desafio tão grande ou maior que os meus 300. Seja qual for o caso lancem-se ao desafio sem medos mas com alguma preparação.


Fotos:
barco Setubal-Troia

vila-nova-de-milfontes

odeceixe
marina de lagos
faro
o campeão!

3 comentários:

  1. 77 O VERDADEIRO CAMPEÃO ! É ASSIM MESMO ;)

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  2. Para minha defesa, e da minha professora da 4ª classe, o texto foi escrito logo a seguir aos 300Km sendo essa a principal causa de algumas das pérolas gramaticais.

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  3. :D um belo passeio. parabéns pelo esforço e pela experiência. é um episódio bonito que podes sempre partilhar com todos à tua volta.

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